Certa vez conheci uma senhora que adotou um menino que, na gestação, passou muita fome. Pelo que se sabe, a mãe dele se alimentava muito mal e o deixou no hospital de certo modo para se "livrar do problema" que tinha no ventre, mas aquela senhora, que muito queria um filho, o adotou, cuidou dele e o fez crescer como qualquer outro menino. Mas, ela conta que quando ele era pequeno, e tinha por volta de um ano ou dois, de vez em quando, pela casa, ela o via andando durante a tarde com pedaços de carne que ele segurava nas mãos e, embora tendo dentes, não mordia, apenas os chupava, como que para tirar o gosto e o nutriente, e assim ele ficava por horas enquanto brincava por aí. Nas primeiras vezes, ela achou estranho mas não deu muita atenção, até que ela percebeu que ele estava com um pedacinho de carne bovina nas mãos mas já há alguns dias ela não preparava nada do tipo para as refeições na casa, e ficou curiosa para entender de onde vinha aquela comida. Então, ela foi observando o menino, até que em um dado momento, ele discretamente pegou uma caixinha que tinha debaixo de sua caminha, e colocou o pedaço já meio consumido de volta e lá guardou, como se aquele fosse o último pedaço de carne da vida dele, retendo-o para si para poder "saborear" um pouquinho mais em um outro dia. Confesso que saber aquilo me deixou arrasada por um lado, mas feliz porque depois esse menino teve as mesmas oportunidades que qualquer outro, e seguir sua vida adiante.
Hoje me lembrei dessa senhora e desse menino (que agora é um homem com quarenta anos e já é até avô) que, por medo de não ter mais uma nova porção, escondia pedaços de carne para si mesmo, sem nunca ter dito à mãe nada, e sem ao menos até aquele momento conseguir entender que não era o esconder o pedaço já velho que garantiria a refeição do dia seguinte, afinal de contas, a carne não só perde o sabor, mas apodrece, e traria então muitos outros problemas àquele menino. Mas... por que me lembrei disso?
Ontem lendo uma postagem em uma rede social, eu via a história de uma garota que questiona sobre o uso que fazemos dos nossos talentos, e como insistimos em abraçar a vergonha ao invés de assumirmos a nossa identidade, que por sinal nos foi dada por Deus (e pode ser melhorada e muito por Cristo se assim O permitirmos), em especial quando alguém é um artista. Como é comum ouvirmos de alguém que tem uma boa voz dizer "ah, mas eu não canto tão bem assim", ou de um fotógrafo uma expressão de espanto quando uma pessoa de nome da profissão elogia algo que ele fez (ou pior ainda, as velhas desculpas advindas do famoso e batido "não repara a bagunça" pra justificar porque aquilo não pode ser considerado de qualidade)! Bom, se você tem um talento artístico e nunca teve uma reação do gênero, te garanto: você é um afortunado, porque sabe quem é e está seguro assim com a sua identidade. Parabéns, siga nessa estrada e floresça, multiplique e use mesmo até o fim o(s) talento(s) e/ ou o(s) dom(ns) que Deus te deu! Infelizmente posso afirmar que eu AINDA não sou essa pessoa...
A postagem dessa moça mexeu comigo exatamente por estarmos em um momento de abraçar a identidade por completo, assumir a alma artista e fazê-la florescer, sem medo, sem vergonha e sem preocupação de agradar a outros ou não. Aliás, o que mais Deus tem me falado neste tempo é sobre realmente assumir profissionalmente quem Ele me desenhou para ser: contadora de histórias.
Por causa da postagem, eu me lembrei da passagem em que Jesus, depois de pregar para uma multidão, é avisado pelos discípulos que estava tarde e que convinha (segundo o olhar deles) liberar a multidão para que eles seguissem viagem para comer. Jesus, surpreendendo a todos, diz a eles que não dispersem a multidão, mas que tragam comida para alimentar todo aquele povo, visto que não seria justo mandá-los embora de estômago vazio, já que as distâncias na época eram grandes e o acesso ao alimento não era simples. Os discípulos, inicialmente confusos, recuperados da reação inicial, começam a procurar alguém que pudesse então ajudar, e se aproxima um rapaz que doa para eles os seus cinco pães e os seus dois peixes. André então apresenta aquela doação para Cristo que a pega nas mãos, agradece ao Pai pela provisão e a multiplica tanto que ao final todos foram saciados e ainda sobrou bastante. E, lembrando de algo que ouvi de uma irmã querida, pensei em como aquele garoto ofereceu o que tinha, sem medo de passar fome, de modo audaz e muito confiante, e com o que parecia tão pouco (mas ao mesmo tempo muito, porque se para a multidão era insignificante, para ele era o sustento necessário) Jesus fez um milagre gigantesco, e alimentou a todos, e o menino entrou para a história da humanidade como exemplo de desprendimento e fé.
Pensemos então: e se eu encarar os meus talentos (por sinal, todos dados por Deus) como aquele garoto encarou os seus pães e seus peixes? Certamente alguém que olha para si mesmo e tem consciência de que o que está em suas mãos é suficiente para si, humanamente falando, teria receio de apresentar os seus dons, afinal, a que serviria aos outros? Eles nem são tão grandes ou tão completos assim... Mas, e Jesus, o que fez com aqueles pães e peixes? Ele reclamou que era pouco? Ele questionou se alguém tinha mais? Ele discutiu o tipo de farinha do pão ou quis saber de que rios os peixes foram pescados? Não! Ele apenas agradeceu e o alimento foi se multiplicando...
Mas... e se aquele garoto da passagem, por não confiar no que tinha sido dado a ele, e não crer no que Jesus poderia fazer com o que ele doou (até porque, no limite, se realmente nada pudesse ser feito, os discípulos teriam devolvido a doação ao menino e a vida seguiria normalmente para ele, com comida do mesmo jeitinho) tivesse feito como o filho daquela senhora fazia, e tivesse escondido os seus pães e os seus peixes, como todo o resto da multidão? E se ele tivesse decidido seguir viagem e não comer o alimento, respeitando a duração natural das coisas e esperando que a comida ficasse ainda em condições de consumo por mais dias e dias, e simplesmente as perdesse, e ficasse com fome, acontecendo então exatamente o que se temia desde o início?
Quando não assumimos quem somos em Deus, e não abraçamos os nossos talentos (poucos, muitos, pequenos, grandes, relevantes ou não, dentro ou fora das paredes dos locais de culto) fazemos como esse menino, guardando aquilo que nos foi dado para um tempo, esperando o momento certo de usá-lo, como se o momento não fosse agora, e como se o dia não fosse hoje... e ao final das contas, deixamos que nossos talentos se encham de poeira, ou mesmo apodreçam, a um ponto que em certos casos, não seja mais possível usá-los, desperdiçando assim a Graça e a provisão divina para nós no tempo atual. E depois nos lamentamos que passamos fome, que a alma não está satisfeita, que a vida não tem cor e que não somos tão bem sucedido quanto um conhecido nosso que, no fundo, faz aquilo que deveríamos fazer mas que por mil e um motivos não fazemos.
Eu não quero ser como o filho daquela senhora. Eu não quero mais esconder meus pedaços de comida em latinhas debaixo da minha cama, como se isso fosse garantir algum conforto ou sustento. Eu não quero mais ser essa pessoa que usa desculpas estranhas para deixar de entrar em cena, ou deixar de colocar em jogo aquilo que já me foi dado. Eu não quero mais viver pensando que o uso do meu talento depende só de mim, embora dependa exclusivamente de mim começar a usá-lo! Eu quero entregá-lo a Deus, como aquele garoto que entregou os pães e os peixes, e quero ver o que Jesus fará com aquilo que pra mim parece tão pouco, mas que certamente da perspectiva Dele, poderá alimentar multidões!
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